VOCES QUEREM A COPA? VOCÊS QUEREM BACALHAU?
O ontem/hoje me traz lembranças entrelaçadas. Não queremos a
Copa – vejo/ouço por aí. Quem não quer a Copa não é brasileiro de verdade, não
quer que o mundo veja a nossa pujança, econômica e social – também vejo/ouço, por
aí. Lembro da copa de 70. Polêmica diferente/semelhante também vi/ouvi naqueles
tempos. Ditadura militar/governo esquerdinha. Oh, tantas
semelhanças/dessemelhantes tristes.
Ontem, como hoje, governantes tentavam – e conseguiram (será
de novo?) associarem ao sucesso da seleção. O comando da seleçãoo era
militarizado: o comando do brigadeiro Jerônimo Basto. Supervisor: capitão
Cláudio Coutinho. Um dos preparadores físicos: capitão Carlos Alberto Parreira.
O técnico, João Saldanha, simpatizante declarado do PC, foi afastado pelo
mandatário de plantão, que desejava escalar um jogador da sua preferência, o
Dario do Atlético Mineiro . No seu lugar entra Zagalo.
E o que tem uma coisa com a outra? Hoje quer se fazer de
conta, em outros moldes é verdade, que a pátria está novamente de chuteiras.
Quem quer a Copa está com o Brasil, é brasileiro de verdade. Quem não quer...
Bom, como nos velhos tempos teremos a polícia, a guarda nacional, exército e
não sei lá mais quem para colocar esse povo no lugar.
Naqueles tempos, acossados pela repressão, vivíamos o drama
de não ser aceitável, para quem era contra o regime, torcer pela seleção. Era
praticamente uma traição aos ideais revolucionários, ainda que
clandestinamente, nos raros e vagabundos aparelhos de TV, preto e brando,
existentes nos tais esconderijos (aparelhos, como se chamavam) uns e outros se
arriscassem a ver os jogos, gritos de gol, de euforia, devidamente reprimidos.
O governo da época faturou o que pode e o que não pode com a
vitória daquele time fantástico, com Pelé, Tostão, Gerson, entre outros, cujo
capitão, Carlos Alberto, ergueu mais de uma vez a taça em companhia do ditador
Emilio Garrastazu Médici, torcedor número 1 da pátria de chuteiras. Quem erguerá junto, desta vez – se vencermos
– a taça?
Vivíamos tempos obscuros. Lembro. Vivíamos o milagre brasileiro. ‘Pra frelehelante
Brasil, todos ligados na mesma emoção’, o Brasil do Ame-o ou deixe-o. Nos
‘aparelhos’ decadentes, acossados pela brutal repressão policial da ditadura,
os últimos estertores da luta armada. Marighela morto em 69, Lamarca logo
depois em 71, restava o foco da guerrilha do Araguaia. Muitos presos, muitos
mortos. Eu vivi.
Chacrinha atirava bacalhau para o auditório, produto
encalhado nas Casas da Banha, seu patrocinador, achou um jeito de promover seu
produto jogando para o auditório (pra quem é bacalhau basta – dizia-se na
época, para desmerecer o próximo). O
tropicalismo estava em alta, a TV em cores, ou a cores (sim, polemiza-se sobre
isso) chegava com força, junto com a primeira transmissão ao vivo dos jogos –
via Embratel.
O Brasil crescia a taxas de 11,2% por cento ao ano. O
emprego crescia, a inflação estava estabilizada na casa dos 18% (bom para a
época), os juros baixos no mercado internacional levou o país a fazer
gigantescos empréstimos no exterior. As montadoras de automóveis viviam em
festa. ‘Ninguém segura este país’, ufanava-se a propaganda oficial. ‘Pra frente
Brasil, Brasil’.
Obras monumentais foram erguidas: Transamazônica, Ponte
Rio-Niterói, usina nuclear de Angra dos Reis, barragens gigantescas como
Itaipú. Tudo parecia possível, até que a crise do petróleo em 73 jogou tudo por
terra, com dívida externa beirando os 100 bilhões de dólares. A festa acabou
tristemente.
Vivemos novamente um novo milagre econômico, nos informa o
Governo. É verdade, mas não é. Muita gente melhorou de vida, milhares saíram da
pobreza extrema, mas as coisas ainda estão muito longe do ideal. Ninguém no seu
juízo perfeito atira bacalhau no público dos programas de auditório, pobre não
vê bacalhau nem de longe, não temos palhaços como Chacrinha. Os palhaços são
outros.
Os estádios ficarão prontos de um jeito ou de outro. Haverá
festa, muita festa, principalmente se a nossa seleção não fizer feio,
principalmente se conseguir se segurar pelo menos até as finais. Muita coisa
prometida não está, nem ficará pronta. Mas que importa? Pra frente Brasil,
Brasil. Salve a seleção e o governo de plantão.
Naqueles tempos tínhamos muita esperança, apesar de tudo. No
fundo, no fundo sabíamos que não era possível vencer, mas acreditávamos ser
possível plantar a semente de um mundo melhor, mais livre, mais democrático,
mais plural, mais humano, não importavam os sacrifícios, nem mesmo a tortura e a
morte que vitimou tantos e tantos companheiros queridos.
Hoje, continuo esperançoso de que tudo que vivi tenha valido
a pena. Que a gente escape dessa dualidade besta do nós contra eles. Que
finalmente tenhamos consciência de que é possível construir um país para todos,
que vá além da propaganda oficial. Que tenhamos um futuro de verdade. Sei que
não verei esse futuro, pelo menos (oh, otimismo) em sua plenitude. Mas continuo
sonhando, que seja pelo menos para os meus filhos e netos.
Gostaria que a Copa fosse realmente uma festa. Que
pudéssemos mostrar ao mundo aquela nossa face gentil, criativa, solidária,
alegre, que anda meio oculta. Que o mundo visse do que é capaz essa gente de
terceiro mundo. Queria que nos tivéssemos afastado da pieguice do bolivarianismo,
das aparentemente eternas ditaduras sul-americanas, sancionadas ou não pelos
votos dos inocentes e sem noção. Queria que deixássemos finalmente de sermos um
país do futuro, que só a Deus pertence, e fossemos o país do presente.
Queria ver, finalmente, uma copa com outros olhos, que não
me lembrassem, senão para esquecer aquela copa de 70. Não pelo futebol, mas
pelo uso, sem vergonha, que volta e meia, ou quase sempre, fazem uso dele e
dela.
Quem sabe, um dia...
Pra lembrar, de Miguel Gustavo
"Noventa Milhões em Ação
Pra Frente Brasil
Do Meu Coração
Todos juntos vamos
Pra Frente Brasil
Salve a Seleção!
De repente é aquela corrente pra frente
Parece que todo Brasil deu a mão
Todos ligados na mesma emoção
Tudo é um só coração
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil! Brasil!
Salve a seleção!"
Comentários
Postar um comentário