O BOM LADRÃO. TRECHOS DO SERMÃO DE PE. VIEIRA. A PROPÓSITO DE NADA
Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são
aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este
gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado,
como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit: furatur enim
ut esurientem impleat animam. (10).
O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao
inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de
maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo
predicamento. Distingue muito bem S. Basílio Magno:
Non est intelligendum fures esse solum bursarum
incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel
qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt,
hoc vero vi et publice exigunt:
Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas
ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que
mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e
despojam os povos.
— Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam
cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem
perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.
Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os
outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam
a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a
enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas
as
outras nações, se nelas não padecera a justiça as
mesmas afrontas!
Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por
ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador,
por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos
ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta
contraposição Sidônio Apolinar: Nou cessat simul furta, vel punire, vel facere:
Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer.
— Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
Declarado suponho finalmente que os ladrões de que
falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna
condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia
o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit:
furatur enim ut esurientem impleat animam. (10).
O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao
inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de
maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo
predicamento.
— Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam
cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem
perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda
vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de
justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar:
— Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. —
Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se
nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a
enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em
triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos
ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?
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